Crítica do filme QUE HORAS ELA VOLTA?, publicada na Folha da
Manhã em 19/09/2015
A figura da empregada doméstica que dorme no emprego, ou
seja, na casa dos patrões, está fortemente arraigada na cultura brasileira.
Embora esse tipo de relação laboral tenha diminuído nos últimos anos, é difícil
encontrar um apartamento ou casa que não tenha ‘quarto da empregada’, espaço
que, felizmente, vem sendo utilizado pelos moradores para outras finalidades.
Sem pretender fazer aqui análise sociológica, é fácil deduzir que as raízes
desse fenômeno provêm da enorme desigualdade econômica que o Brasil sofreu ao
longo da sua história, que permitia que até famílias de classe média pudessem dispor
de uma empregada em tempo integral. Soma-se, também, um inconfessável ressabio
elitista da época imperial, que estabelece que certas tarefas não podem nem
devem ser feitas “pela gente”: lavar roupa, varrer, fazer a cama, etc.
“Que horas ela volta?” revela essa relação de hierarquias e
submissões que ainda subsiste na sociedade brasileira, embora muitas vezes de
forma inconsciente. Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica pernambucana
que trabalha e mora na casa de Carlos e Bárbara, um matrimônio de classe media
alta residente em Morumbi, São Paulo. Val foi também a babá de Fabinho, o filho
do casal que, apesar de ser já adolescente, se mostra mais apegado à doméstica
do que a própria mãe. A Val tem uma filha, Jéssica (Camila Márdila) que está vindo do Recife para morar com a mãe, disposta a estudar
em São Paulo. Dado que a Val reside na casa dos patrões, a Jéssica terá que se
integrar à família. O conflito surgirá da percepção, por uns e outros, de que
agora tem em casa uma pessoa que não se ajusta nem ao conceito de hóspede, nem
de parente, nem de empregada.
A diretora Anna Muylaert
consegue, com díspar sucesso, criar nessa casa de Morumbi um universo
livre dos maniqueísmos e exageros próprios do paternalismo didático da maioria dos
realizadores brasileiros. O donos de
casa aparentam ser um casal gente boa, educados e respeitosos com os seus
empregados. Um casal ‘progressista’. O filho tem verdadeira afeição filial pela
Val, a quem recorre até quando não consegue dormir. Todavia, o distanciamento
hierárquico aparece a todo instante, de forma quase que inevitável, seja ao
solicitar a retirada da louça depois de uma conversa cordial, seja no rosto da
Val, preocupada ao ver que a sua filha está saboreando o sorvete “do Fabinho”.
Nesse aspecto, destaca-se a cena da reunião que acontece na residência, onde a
câmera acompanha à Val servindo petiscos aos convidados. Não há ali sublinhados
nem pinceladas grossas; não são necessários: a submissão social é revelada ao
mostrar o evidente.
Infelizmente, essa sutileza é turbada em algumas passagens
onde a mensagem é dita de forma mais exagerada, como se Muylaert precisasse reforçar aquilo que já foi
sugerido. Estes deslizes se concentram especialmente em Bárbara, a dona de
casa, que por breves momentos adquire aspectos caricatos de personagem de
novela, num marcado contraste com a interessantíssima figura do seu marido,
Carlos. O chefe da família, interpretado por Lourenço Mutarelli, possui uma repressão emocional
que se revelará em certo ponto de uma
forma patética, mas maravilhosa e absurdamente triste.
Mas qualquer defeito de “Que horas ela Volta?” que tenhamos apontado fica compensado diante
a magnífica e deliciosa interpretação de Regina Casé. Ela dá vida a uma Val
cheia de amor, dedicação, sofrimento e alegria de uma forma tão convincente e
simpática, que a sua simples presença na tela justifica, por si só, assistir o
filme. Basta ver o desempenho de Casé na cena onde informa o resultado do
vestibular da filha para entender que estamos frente a uma enorme atriz.
A Val de Casé deverá ser lembrada como uma das grandes
personagens do cinema brasileiro, pois é também homenagem e modelo. É um
tributo para essas mulheres que, encurraladas dentro das suas enormes
limitações provindas de uma história de pobreza e injustiça, decidem fugir para
adiante com as poucas armas que a vida lhes outorgou: o carinho e o trabalho. E
é exemplo quando finalmente entende que, sem o inconformismo, o sacrifício é apenas uma forma voluntaria de escravidão.
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