Em 1950, depois de oito anos sem estrear
uma animação de respeito, os Estudos Disney lançavam o filme “Cinderela”, que
resultou um sucesso de bilheteria de tal magnitude que salvaria a empresa da
sua iminente falência. Com efeito, apesar de hoje venerados, filmes como
“Pinochio” (1940), “Fantasia” (1940) e “Bambi” (1942), não retornaram o
investimento almejado e, não fosse por Cinderela, provavelmente a Walt Disney
Company tivesse encerrado suas atividades, ou, no melhor dos casos, teria se
limitado à produção de filmes menos ambiciosos. Certamente, a Disneylândia e o
Disney World não existiriam — imaginem só!
A questão é que, 65 anos depois, a Disney lança “Cinderela”
em live-action, isto é, com atores ‘de carne e osso’. A personagem
principal é interpretada por Lily James (do seriado Downton Abbey), e o
príncipe pelo ator Richard Madden (de Game of Thrones). A direção fica por
conta nada menos que de Kenneth Brannagh, o ator/diretor britânico que iniciara
sua carreira cinematográfica adaptando as obras de Shakespeare “Henry V” e
“Hamlet”, e quem em 2011 dirigira a megaprodução “Thor”, da Marvel.
Há de se dizer que Brannagh, em “Cinderela”, toma uma
decisão curiosa. Ele mantém praticamente inalterada a história do filme
original, com a inteligente iniciativa de excluir os segmentos musicais. Sendo
assim, não há muita coisa a revelar em relação ao clássico conto de Perrault
que o leitor já não saiba, a não ser um prólogo onde conheceremos a mãe e o pai
de Cinderela e saberemos como ela fica órfã. Também veremos a chegada à casa da
malvada madrasta (uma Cate Blanchett impactante, mas sem ofuscar o resto do
elenco) e suas frívolas filhas, prontas para infernizar a existência da boa
moça.
O filme até revela a origem do nome da personagem.
Infelizmente, a explicação não será facilmente entendida pelas crianças
brasileiras, dado que aqui nunca se traduziu ao português. Recomendo, leitor,
caso você seja o encarregado de levar os pequenininhos ao cinema, que os ajude
informando-lhes previamente que a palavra ‘cinder’ significa ‘cinza’
em inglês.
“Cinderela” impacta pelo seu visual. Tanto as locações
quanto os figurinos são deslumbrantes, e em nada fica atrás em relação ao
desenho de 1950 no que tem a ver com a recriação fantástica desse reino de
conto de fadas (falando delas, a encarregada de aprontar a protagonista para
que possa se apresentar no baile é Helena Bonham Carter, a ex mulher de Tim
Burton). A cena da dança no palácio certamente fascinará as meninas com idades
entre 3 e 70 anos.
Mas, dentre todos os aspectos positivos que o longa tem, eu
destacaria um que, no presente ponto da nossa cultura cinematográfica, resulta
completamente inovador: a sua completa falta de cinismo. Não há em Cinderela uma
única referência metalinguística a nenhum aspecto da cultura contemporânea,
como pareceria ser a regra nos atuais filmes infantis. Não há, também, nenhum
comic relief que faça comentários mordazes. Tampouco veremos aqui o
revisionismo irônico das estórias clássicas, à la Shrek, nem mudança no
ponto de vista, como em “Malévola”.
O “Cinderela” de Kenneth Brannagh possui a pureza e a
inocência dos contos que nos contam por primeira vez, naquele instante da vida
onde não há lugar para parodias ou deboches, e onde os vilões são maus e os
heróis, bonzinhos. Em outras palavras, “Cinderela” é tão cândido quanto uma
criança deveria ser.
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